Jaguará é o que? A tal “mula preta com sete parmo de artura” da canção caipira de Raul Torres? Um vira- peles(ou lobisomem)? Um ser totêmico, fantasmagórico?
O que és tu,coisa feia? Ah, meu Deus!
Porque, se não é cavalo, não é boi, não é gente, nem diabo pode com ocê.
Lá vem, lá vem!
O jaguará/ Corpo de gente/
Cabeça de animá.
Permitam-me rimar também. Em Apiacá, Espirito Santo, o tradicional festejo de São João, em noites de 23 de junho, exerce muita atração. Mas destaque mesmo, fascínio de hipnotizar, só o jaguará. O troço dá um medo medonho, com seus olhos de piscar. Dizem que é coisa inventada, da prodigiosa mente popular. Mas é fábula fabulada, isso sim,tramada por festeiros. Quem se aproxima? Pois que aproxime. Corre, corre, brincante, o Jaguará é andante!
Pausa para o livresco: Atlas! Atlas! Jaguará é crânio de cavalo enfiado em ponta de bambu! Atlas! Atlas! Jaguará é monstro exótico que faz parte da convivência ancestral rural! Extra! Extra! Suas origens remontam ao teatro nata-lino da Idade Média, quando outras figuras animalescas contracenavam com o boi e o burro do presépio! Quem quiser informações a mil, pesquise até cansar, o folclore do Brasil!
Pausa na rimação. Então, os jaguarás da famosa festa de Apiacá, acompanhados de alegorias de mulinhas e bois pintadinhos, misturam-se aos brincantes como símbolos do cotidiano e da história remota do lugar.
O enredo desse teatro interativo é o seguinte: enquanto os jaguarás assustam, as mulinhas “protegem” os bois pintadinhos da criançada endiabrada, que puxa os rabos.
Os jaguarás são feitos com crânios aproveitados das carcaças de cavalos carcomidas, abandonadas. O crânio é desinfetado com álcool e cal. Hoje em dia esta mais difícil achar carcaça. Moem pra dar de comer pros animais, diz seu Zilo Moreira Bessa,76 anos neste 2004, filho mais velho do festeiro-mor, o seu Badita.
Seu Deuzinho (João de Deus Bessa) e Leidinha (Zirleida Moreira Moulin), são irmãos de Zilo. Três parceiros na tradição do Jaguará de Apiacá. Seu Deuzinho,coordena a montagem das fogueiras, encomenda os comes e bebes, prepara as tochas-latas com estopas embebidas de diesel, equilibradas em bambus.
Seu Zilo e Leidinha são, digamos, os “confeccionistas”. Fantasiam o folguedo, literalmente, entre outras dezenas de afazeres. Seu Zilo trata das carcaças de ossos ou, de taquaras. Leidinha encapa, costura, estofa. Seu Zilo pinta o crânio seco desinfetado do infeliz cavalo, mas não a arcada dentária, seu houver.
Ele encaixa um bambu de um metro e setenta centímetros na cavidade que antes recebia a espinha do animal.
Com o bambu aprumado na terra, a aflitiva cabeça do bicho aponta seus olhos fumegantes para o céu. Alguns incrementos são necessários para o crânio horripilar ainda mais. Seu Zilo e auxiliares enfiam um bojo de lâmpada elétrica (sem rosca de meta) em cada uma de suas cavidades oculares. Dentro de cada bulbo, uma lampadinha de três volts. O bulbo é o globo ocular; a lampadinha a íris do “totem”.
No passado, com menos recursos disponíveis-como pilhas, fios flexíveis, lâmpadas pequeninas etc. Os olhos eram lâmpadas domésticas também, mas com bojo pintado de vermelho.
Outro incremento importante é um cabo que escorre pelo bambu. A função do cabo é movimentar os maxilares.
O jaguará veste preto da cabeça (ou melhor, do pescoço) aos pés. Sob a roupagem tubular preta há um sujeito-humano, supõe-se-que comanda o rumo, o piscar e o morder do bicho raro. Sob as vestes, o condutor do Jaguará é uma incógnita.
O mesmo ocorre com os bois pintadinhos e as mulinhas. Ambos são construídos também com crânios presos a uma armadura (uma espécie de grande banheira de ponta – cabeça) feita de taquaras. Só que as cabeças das mulinhas ou potrinhos não são de cálcio mas, sim, tecido recheado com estopas, olhos vermelhos de feltro e uma mandíbula amigável, em comparação com a do Jaguará. A mesma técnica é usada para as corcovas (zebus) posicionadas nas costas da armadura. Leidinha cobre a armadura com chitão de cores berrantes. O rabo dos pintadinhos são feitos com cordas desfiadas.
No passado, outros personagens, talvez mais “humanos”, como Pai João e Mãe Maria, participavam desse folguedo. Mãe Maria era um corpo de homem em vestido e chitão, maquiagem exótica, nádegas por travesseiros, duas longas tranças postiças na cabeça. Pai João era um cabra caipira feminino, de bigode pintado, chapéu de palha e calças e camisas remendadas de propósito.
Era um triângulo amoroso, brinca Leidinha, porque também tinha o Pai Mané. Pai Mané ficava passando lábia na Mãe Maria. Pai João enciumava e corria atrás dele.
Todos entravam em cena juntos: Pai João, Mãe Maria, jaguarás, bois pintadinhos, mulinhas. E a sanfona desembolava. Balancê! Olha túnel! A falecida Dona Mariquita (Maria José H. Bessa) era dançarina de mão cheia e sua filha Leidinha, uma excepcional marcadora de quadrilha.
Essa festança valiosa não existiria sem o nascimento de seu Badita (Raymundo Dutra Bessa). Seu Badita era espírita(chegou a ter um Centro Espírita em Apiacá),mas batizou todos os filhos na Igreja Católica. Sem radicalismos, Seu Badita e Dona Mariquita transitavam pelos credos como bóias numa corredeira.
Faziam questão do São João e ninguém meter a mão no bolso para ajuda-los na realização da festa. Seu Badita bancava tudo: os adereços, as alegorias, sanfoneiros, os percussionistas dos Caxambus (tambores em madeira e couro de boi). Emprestava seus colonos para a preparação do “arraiá”. Dona Mariquita cuidava das quitandas (broas de milho, biscoitos de polvilho, pães, batata doce, inhames, biscoitos de nata, brevidade), requeijão caseiro, leite com açúcar queimado, quentões...
Como disse o ex-ministro Gilberto Gil, cultura é metade resistência, metade rendição.
Hoje o passado se adaptou um pouquinho ao presente, guardadas as devidas proporções. Tem salsichão, espetinho de frango, pastel de queijo e de carne.. Mas ninguém esquece o pau-de-sebo, os fogueirões, a quadrilha, o caldo de canjiquinha, o milho cozido.
Desde 1998 a festa de São João com o Jaguará dos Bessa vem sendo realizada próxima à sede da propriedade atual de Seu Deuzinho, a Chácara Baditão, às margens da rodovia ES-297, a não mais que doze quilômetros da fronteira com Estado do Rio. Centenas de caminhões carregados transitam dia e noite pela rodovia.
Consta que Seu Badita passou organizar essa especial festa junina como pagamento de promessa que fez para que seu filho Deuzinho recobrasse a saúde. Seu Deuzinho foi um bebê frágil. Deram-lhe até banho com sangue de tatu e a simpatia não parou por aí. Chupei coraçãozinho de tatu, diz Seu Deuzinho, que hoje se considera saudável.
Filho de João Tenente(mineiro) e de Emilia Ferreira Bessa(emigrante portuguesa), Seus Badita nasceu em 1901. Teve nove filhos(seis vivos) todos nascidos em Apiacá. Faleceu em 1973, aos setenta e dois anos.
Os jaguarás piscantes de hoje são reverência a Seu Badita.
Então, o jaguará, o que é? Corpo de gente, cabeça de animá. Sô!